COLISÃO ENTRE O DIREITO DE VIVER E O DIREITO DE CRENÇA RELIGIOSA: o dever legal de agir do médico.[1]

A ilustre professora doutora Maria Helena Diniz, em sua obra-prima denominada O ESTADO ATUAL DO BIODIREITO, introduz o assunto “Colisão entre o direito de viver de uma pessoa e o direito de crença religiosa de outra[2] com uma série de perguntas intrigantes, tais como: “Os pais de uma criança poderiam, por motivo religioso, recusar a transfusão de sangue que lhe salvaria?”; “O tribunal poderia assumir o papel de pai substituto?”; “Os pais têm direito de decidir sobre o destino do filho, que não tiver condições de manifestar, conscientemente, sua vontade, baseados no direito de liberdade de crença[...], garantido constitucionalmente?”.

Tais indagações são analisadas segundo um suposto confronto entre dois direitos fundamentais garantidos por nossa Constituição Federal (CF/88): o direito de crença e o direito à vida. Não temos a pretensão de responder a tais perguntas neste breve escrito, mas as trouxemos para introduzir uma importante discussão que se refere à atuação do médico em caso de manifestação de um paciente ou de seus pais (no caso de paciente menor de idade) no sentido de recusa a determinados procedimentos médicos.

A manifestação de vontade no sentido de se recusar a submeter-se a determinados procedimentos médicos com base no direito de expressão religiosa (crença) é assunto que já há muito tempo envolve discussões acaloradas e polêmicas.

O direito de liberdade de crença e o direito à vida encontram respaldo no art. 5º da CF/88. Vejamos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. (grifei)

[...]

O direito de crença é o fundamento normativo constitucional utilizado por indivíduos de grupos religiosos e/ou denominações confessionais para a recusa de se submeterem a determinados procedimentos e/ou tratamentos médicos que, por ventura, possam violar qualquer uma de suas crenças. Assim, não resta dúvida de que tal direito deva ser respeitado. O caso “clássico” se refere à possibilidade de recusa à transfusão de sangue.

Por outro lado, o profissional da saúde, em especial o médico, tem a incumbência de utilizar todos os meios disponíveis para evitar que um quadro clínico de um paciente se desestabilize e culmine com a sua morte, pois o médico tem o dever legal de agir para garantir a manutenção da vida digna de seus pacientes. Caso seja evidenciada a recusa/omissão em sua atuação numa situação em que a vida de um paciente esteja por um triz, o médico poderá estar cometendo crime de omissão de socorro, espécie de periclitação de vida (responsabilidade criminal). Também incorrerá em violação ética, podendo responder perante seu conselho profissional regional (responsabilidade administrativa). Ainda, numa possível ação indenizatória regressiva do hospital em que atue, a depender do caso concreto (responsabilidade civil).

Assim, tem este nobre profissional o dever legal de agir na situação em que há risco à vida do paciente. Em tal situação, o que deve prevalecer é o direito à vida do paciente, ainda que haja vontade contrária deste ou de seus pais (em caso de menor de idade) com fundamento no direito de crença. O que vale o direito à crença se não houver vida? Obviamente que tal indagação não considera outras concepções de vida além da orgânica e da social. Outras, como a relacionada ao plano espiritual, fogem desta discussão e não são objetos de estudo do direito, mas da teologia, da filosofia etc.

De outro giro, caso não haja o risco à vida do paciente e, havendo tratamentos alternativos, deve ser respeitado o seu direito de crença. Nesta circunstância, tendo o médico o registro de livre consentimento do paciente ou dos pais (em caso de menor de idade), estaria garantido o direito de crença bem como o direito à livre disposição do corpo como estabelecido pelo art. 15 do Código Civil: “Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”.



[1] Richardson T. Gave – Advogado – Especialista em Direito Constitucional e em Direito Médico e da Saúde. (e-mail: gaveadvocacia@gmail.com).

[2] DINIZ. Maria Helena. O estado atual do biodireito. – 10.ed.- São Paulo: Saraiva, 2017, pp.379-381.

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